23 de março de 2012

Relato de vida - Cleo Morais

       
Aos poucos estou colhendo bons frutos a partir deste blog. Através dele estou conhecendo pessoas muito interessantes, surdas ou não, que se interessam por esta discussão. Uma delas,é a Cleo Morais, que após ler o blog me adicionou ao facebook. A partir de então, começamos a conversar. Ela é uma pessoa muito inteligente, com uma ótima conversa e super prestativa. Sendo assim, gentilmente, ela será colaboradora do “Surdez – Descobrindo um mundo novo”.
Vamos então começar a conhecer a trajetória de vida desta mulher, que ficou surda quando criança e teve que readaptar a sua vida, assim como a sua família, enfrentou preconceitos, superou obstáculos e hoje é um exemplo para todos.
Os textos foram escritos por ela, com a minha adição.


Certa tarde de domingo estava na casa de uma colega e comecei a sentir muita dor de cabeça. Ao chegar em casa, avisei minha mãe a respeito da intensa dor; ela me deu um remédio e fui dormir. Ao acordar para estudar, a dor voltou violentamente, de maneira que não consegui me levantar.
Três dias se passaram e nada dos médicos descobrirem a causa de tanta dor e sofrimento. Uma vizinha chamou a ambulância e fui levada as pressas ao Hospital das Clínicas em São Paulo. Fiquei em coma por algumas horas, e permaneci internada por 45 dias para desespero de toda a família. Foi detectada meningite, doença que causou minha surdez.
A meningite é uma inflamação das meninges, membranas que revestem o cérebro. A infecção pode ocorrer devido a invasão de vírus ou bactérias. Os sintomas da doença são: fortes dores de cabeça, dores na nuca, indisposição, febre alta, articulações dolorosas e manchas vermelhas na pele. A doença pode levar à morte, ou deixar graves seqüelas como: surdez, lesões nas meninges e danos cerebrais.  A meningite bacteriana é a mais grave, e se não for detectada a tempo pode levar a morte em poucas horas.
O meu quadro clínico poderia ter sido diferente se a doença fosse detectada antes da internação, mas isso acontece com muitos que procuram assistência médica e são encaminhados para casa sem diagnóstico, não recebi atendimento adequado e as fortes dores que sentia e os sintomas acima descritos, não foram levados em consideração; voltava para casa apenas com uma receita médica nas mãos.
Como mencionei, fiquei internada por 45 dias, foram os dias mais agonizantes da minha vida. Recebia visita dos familiares apenas três vezes por semana, não conseguia me locomover sozinha, era necessário o auxilio das enfermeiras para tomar banho e me alimentar.
Ainda no hospital, o médico junto com a psicóloga e fonoaudióloga foi ao meu quarto e me deram a seguinte notícia: “Você teve muita sorte porque poderia estar morta uma hora dessas, você só ficou com um “probleminha”, sua audição. Você não voltará a ouvir nunca mais”. No meu caso tive surdez moderada (A pessoa não ouve o tic-tac do despertador, escuta um sussurro e tem dificuldades de falar ao telefone ) e profunda (A pessoa só ouve ruídos (vibrações) como os provocados por uma turbina  de avião, disparo de revólver e tiro de canhão).
Os especialistas disseram: ”Vamos lhe amarrar porque o teste que iremos fazer irá lhe causar muita dor, você precisa ser muito forte e prender bem os dentes”. Esse teste era em meus ouvidos: uma agulha que era ligada e um choque era emitido em meus ouvidos. Foi uma experiência horrível e não desejo a ninguém.
Dias depois, estava muito triste e queria ir embora para casa - faltava uma semana para a páscoa. Novos exames foram realizados e fui liberada. Minha páscoa não foi como a das crianças normais, não tinha ovo e nem coelhinho, mas tinha muita tristeza.
A vida neste momento parecia não ter mais sentido, estava só, e sentia muita tristeza, me sentia dependente dos outros.
 Inicia-se uma reconstrução psíquica quando se descobre uma deficiência, o resgate de coisas de sua própria essência, como o valor de si próprio para se ter uma nova esperança.
Algo que me chateava e me chateia até hoje é quando as pessoas têm pena de mim.  Não gosto de ser vista como uma coitada. Outra coisa que me irrita quando estou com outras pessoas, é alguém mencionar: “Fala alto porque ela não escuta”.
         Ao meu regresso para casa, comecei a fazer amizade com o Edilson que também era surdo, tinha ele cinco anos de idade, mas já sabia sinalizar, me sentia bem falando com ele, como se de certa forma ele me entendesse e soubesse o que eu estava passando.
Certa vez a mãe de Edilson comentou com a minha mãe sobre a escola onde ele estudava, a escola especial se chamava Neusa Basseto. Assim se fez: minha mãe me matriculou e no primeiro dia de aula, me deparei com várias pessoas falando em Libras, comecei a chorar dizendo que não era surda e que não precisava daquela escola.
Desisti de estudar e fiquei, por um tempo, afastada da escola e da sociedade. Tinha vergonha de sair de casa, era difícil aceitar tudo aquilo. Até que um dia, minha mãe me disse: “Desistir da vida ou lutar por ela?”.
A maior influência no que diz respeito à aceitação e rejeição de uma criança com deficiência pela família, diz Busgaglia (1997), é a atitude apresentada pela mãe dela. Ela é capaz de lidar com a situação aceitando-a com segurança e a família será capaz de reagir da mesma forma. Se a mãe torna-se chorosa, triste e lamenta muito pelo ocorrido, os demais, que estão a sua volta, seguirão este exemplo. A família passará por uma redefinição de papéis após absorver o impacto. Será necessário uma reestruturação familiar, atitude, valores e um novo estilo de vida.
Percebi então que minha mãe, apesar de todo cuidado, poderia muito bem aceitar que eu permanecesse em casa sob a sua proteção, longe do preconceito e da descriminação, evitando que eu sofresse. Mas não; ela permitiu que despertasse em mim naquele momento, a vontade de viver, de dar um passo e acreditar que eu poderia freqüentar uma escola como as crianças normais da minha idade.
A partir daí as coisas começaram a mudar, decidi que deveria aceitar-me primeiro para depois ser aceita pela sociedade. Comecei a fazer terapia com uma psicóloga que aos poucos foi me ajudando. Lembro-me muito bem quando ela citou: “Se tenho uma perna menor do que a outra e preciso subir uma escada, vou pedir ajuda para não cair. Assim também deverá acontecer com você, deverá pedir às pessoas que falem devagar para que possa entender”.

É bastante enriquecedor conhecer a vida de uma pessoa que ficou surda, pois assim aprendemos realmente como essas pessoas se sentem e todo o processo adaptativo pelo o qual ela passa. Isso é importante para que saibamos lidar com elas e desta forma ajudá-los da melhor forma possível.
Além disto, acompanhar o processo de superação nos ensina muito também.
Está curioso para saber como foi o início da vida adulta da Cleo? Então não perca semana que vem a próxima publicação.

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